As crianças tomam conta do mundo

Por sindoif

Num planeta governado por adultos infantilizados como Trump e Bolsonaro, meninas de diferentes países lideram uma rebelião pelo clima e marcam uma greve global de estudantes para 15 de março.

A luta contra o aquecimento global é hoje liderada por garotas de vários países do mundo. Estudantes secundaristas, a maioria. Mulheres muito jovens, carregando um novo espírito do tempo no mundo sem tempo, em que só há 12 anos para tentar impedir que o planeta aqueça mais do que 1,5 graus Celsius e o futuro logo ali seja uma vida muito ruim para todos, impossível para os mais pobres e os mais frágeis. Jovens mulheres com muito pânico porque os pais e avós ferraram o planeta em que vão viver e se comportam como gente mimada e egoísta que faz apenas o que quer sem se preocupar com as consequências nem mesmo para seus próprios filhos e netos. Uma parcela da espécie humana chegou a um nível de individualismo que nem mesmo protege a prole naquilo que é fundamental – e o presente se torna absoluto. De repente os mais jovens perceberam que a sobrevivência está comprovadamente ameaçada e os governantes estão brincando no Twitter.

Esse movimento de crianças e adolescentes é movido pela compreensão dos muito jovens de que os adultos não são adultos. É o que eles têm dito. “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás”, afirmou a sueca Greta Thunberg em dezembro, durante a Cúpula do Clima, realizada na Polônia.

Ela tinha apenas 15 anos, em agosto de 2018, quando decidiu fazer um boicote às aulas todas as sextas-feiras e se postar diante do parlamento, em Estocolmo, para dar o seguinte recado: “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”. Desde então, Greta, uma menina de rosto redondo em que as tranças escoltam as bochechas, tornou-se uma referência internacional na luta contra o aquecimento global e tem inspirado movimentos de estudantes em vários países. Em 15 de março, planejam realizar uma greve global pelo clima.

A novíssima geração de humanos teve a extrema má sorte de nascer num momento histórico em que os pais não conseguem lidar com a questão do tempo. Os adultos atuais cresceram bombardeados pelo imperativo do consumo que prometia prazer imediato, reiniciado a cada ato de compra, num looping infinito. O tempo passou a ser um presente estendido. Tudo o que existe é o agora do qual é preciso arrancar o máximo. É este o mundo em que cidadãos foram convertidos em consumidores. É este o funcionamento dos adultos atuais num momento histórico em que o aquecimento global, comprovadamente causado por ação humana, se não for barrado, mudará a face do planeta.

Quando os mais respeitados cientistas do clima alertam que há pouco mais de uma década para evitar que a Terra se torne um planeta hostil para a nossa espécie, que é preciso mudar os padrões de consumo já e, principalmente, pressionar os líderes para tomar as medidas mais do que urgentes, a reação parece ser a de seguir mantendo o presente ativo, incapazes de enfrentar uma ideia de futuro que não seja determinada por renovações do ato de consumo no pacto capitalista do presente contínuo.

Os muito jovens perceberam que a época em que as crianças fazem só o que querem por conta de pais com problemas para educar e dar limites começa a dar lugar a época em que as crianças percebem que os pais fazem só o que eles querem porque são incapazes de aceitar que seja necessário ter limites. Mesmo limites bem pequenos, como, por exemplo, reduzir o consumo de carne a apenas uma vez por semana, já que a pecuária é uma das principais causas do aquecimento global. Ou deixar o carro em casa e usar transporte público ou bicicletas. Ou reciclar as roupas. Há quem tenha preguiça até mesmo de se responsabilizar pelo lixo que produz.

Todos acreditam que podemos resolver a crise (climática) sem esforço nem sacrifício”, escreveu Greta Thunberg em um de seus artigos. Hoje com 16 anos, ela demonstra a lucidez que falta na maior parte dos líderes mundiais. Este é um ponto importante do movimento dos estudantes pelo clima. Apesar de apontar a dificuldade dos adultos para mudar a vida cotidiana, assim como suas escolhas e a relação fundamental com o tempo, as crianças e adolescentes sabem que esta transformação não pode ser reduzida apenas a decisão de cada indivíduo. Os estudantes têm concentrado sua pressão sobre as autoridades públicas de cada país. São essas as lideranças que têm poder para barrar as grandes corporações, taxar os poluidores, determinar políticas capazes de interromper a escalada de destruição.

Nunca houve nada parecido na história. Em nenhuma história. Os filhotes tentam salvar o mundo que os espécimes adultos destroem sistematicamente. Para além dos efeitos concretos sobre o futuro da humanidade, serão necessários muitos anos de estudos para compreender os efeitos desta inversão sobre a forma de compreender o mundo e seu lugar no mundo daqueles que serão adultos amanhã. Mas, para isso, é preciso antes ter amanhã.

O Brasil é o país mais biodiverso do planeta. Tem no seu território a maior porção da maior floresta tropical do mundo. Deveria estar na vanguarda do combate ao aquecimento global e à perda avassaladora de biodiversidade. Deveria ocupar seu lugar estratégico e se colocar na vanguarda de todos os movimentos pelo clima. Deveria. Mas não está.

E não está porque, depois de governos inconsequentes e estúpidos diante da crise climática, à esquerda e a à direita, o país tem hoje um governo de extrema-direita que, além de ser inconsequente e estúpido, também contém uma parcela de alucinados. O governo militarizado de Jair Bolsonaro pode conduzir o Brasil para o abismo. E, dada a importância da floresta amazônica, arrastar o planeta com ele.

É preciso ser muito claro neste momento e afirmar com todas as vogais e consoantes disponíveis que uma parcela do governo Bolsonaro é composta por gente que usa o poder de forma perigosa. Gente que brinca de guerra. Gente que brinca de arma. Gente com delírios de grandeza e desejo de destruição. Gente que tem tanto medo dos próprios demônios que enxerga o diabo em toda parte, de preferência no outro. Gente que enaltece torturadores, chama ditadores de estadistas e dá medalhas a milicianos.

Os estudantes brasileiros, pela importância do Brasil na redução das emissões de gases que provocam o aquecimento global, deveriam ter protagonismo na greve climática marcada para 15 de março. Mas até este momento não têm. Porque vivem num país em que os adultos no poder são tão precários, mas tão precários, que é preciso explicar para o ministro do Meio Ambiente que não há nada mais importante neste momento histórico do que saber quem é Chico Mendes. É preciso ficar repetindo e repetindo o óbvio para que a estupidez não vire inteligência.

Há uma particularidade que torna o enfrentamento da crise climática ainda mais difícil no Brasil. O crescimento acelerado dos evangélicos neopentecostais nas últimas décadas fortaleceu a crença no apocalipse bíblico. Para uma parcela deles, que apoiou massivamente a eleição de Bolsonaro, as catástrofes provocadas pelo aquecimento global não foram causadas por ação humana, mas sim estão previstas na Bíblia como os acontecimentos que prenunciam o Armagedom. Ou, mesmo que tenham sido causadas por ação humana, já estava escrito. É bastante possível que seus líderes não acreditem nisso, apenas usem uma interpretação literal da Bíblia para melhor controlar os corpos e barganhar poder. Mas há uma massa de fiéis que acredita. E que cresce.

Tudo o que pode ser visto como catástrofe climática causada pelo uso de combustíveis fósseis, para essa linha do evangelismo é apenas cumprimento da profecia bíblica. São eles que pressionam para mudar a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, porque esta cidade seria o palco do Armagedom. Mais uma vez é preciso sublinhar que os articuladores desta ideia têm interesses bem mais imediatos e mundanos, que revestem com uma retórica bíblica para santificar o que é totalmente terreno.

Não é permitido esquecer que Bolsonaro foi batizado no Rio Jordão, em Israel, em 2016, e que pastores como Silas Malafaia promovem excursões para Israel. Para esta camada de evangélicos que só cresce no Brasil, a catástrofe é bem vinda, já que eles têm certeza que serão salvos porque são os únicos puros. Salvar-se, portanto, seria apenas uma questão de ter a fé certa. A deles, claro. Como então demandar razão neste país? Talvez seja preciso avisá-los que o rio Jordão está se tornando mais e mais estreito devido à seca causada pela crise climática. Se o processo continuar, logo será preciso encontrar outro rio para batismos espetaculares.

Se as novas gerações (e também as velhas) dos povos da floresta fossem escutadas, elas poderiam dar aula para os estudantes que se rebelam pelo clima na Europa. Também na Amazônia o protagonismo das mulheres nas lutas de indígenas, quilombolas e beiradeiros é cada vez maior – e as lideranças são cada vez mais jovens. O profundo conhecimento dos povos da floresta, imprescindível para enfrentar a crise climática, e a rebelião que sua luta representa, porém, têm sido sistematicamente caladas. O projeto de Bolsonaro, como ele afirmou várias vezes, é que indígenas e quilombolas se tornem “ser humano como nós”. Se o “nós” é ele, pode se imaginar o ganho de conhecimento que as gerações da floresta terão.

Sem a maior floresta tropical do mundo, a vida humana no planeta não tem nenhuma chance. No Brasil, como nos outros países amazônicos da América Latina, os povos da floresta estão lutando quase sozinhos para mantê-la em pé. E morrendo. Os filhos destes lutadores têm precisado assumir a luta dos pais assassinados. As jovens garotas que lideram a rebelião dos estudantes pelo clima na Europa têm o desafio de fazer a ponte com as jovens garotas da floresta amazônica, o centro geográfico onde o futuro próximo está sendo disputado. E vice-versa.

Num mundo em que as decisões ainda são majoritariamente tomadas por homens, as garotas levantaram a voz. Os milhares de meninos de sua geração que vão para a rua com elas não parecem ter problemas com o protagonismo feminino dos protestos. Meninas como Greta, Anuna e outras tantas, porque elas são muitas, não querem ocupar o lugar dos adultos. Não é disso que se trata. O que elas querem talvez seja ainda mais difícil. Ao denunciar a infantilização dos governantes, ela reivindicam que os adultos se “adultizem”.

O afiado cronista brasileiro Nelson Rodrigues, que era também um exímio frasista, ao ser perguntado que conselho daria aos jovens, disse: “Envelheçam!”. As crianças que estão sendo obrigadas a tomar conta do mundo dizem hoje aos adultos: “Cresçam!”.

Chegamos a este ponto: as crianças precisam pedir aos adultos que sejam adultos. Que tenham limites e se responsabilizem. Ou, em suas palavras: “Parem de cagar no planeta em que vamos viver”.

Fonte: El País (veja o texto completo, de autoria de Eliane Brum, aqui).

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